Pequenos animais sem dono (Maju de Paiva, 2016)
- Pedro Alves
- 9 de jan. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 4 de jun. de 2022

Antes de escrever propriamente sobre o filme, eu peço permissão para abrir essa crítica divagando um pouco sobre a forma como enxergo a relação entre infância e filhotes de animais no cinema.

Anos atrás, o Pequeno Pedro se mudou para Brasília e não possuía um grupo de amigos próximo. A cidade também não o ajudava a socializar e isolava todos os seus moradores por conta de sua própria arquitetura. Por conta disso, ele passava a maior parte do seu tempo livre — aqui me seguro na escrita para não correr o risco de me exceder e perder o leitor logo no começo do texto, mas poderia facilmente afirmar que TODO o tempo livro — nos centros culturais e cinemas que a capital brasileira poderia oferecer. Em uma dessas incursões, o Pequeno Pedro acabou se deparando com um filme holandês lançado em 2012 que se chamava Kauwboy. Dirigido por Boudewijn Koole, esse é um filme que me marcou tanto que, assim que entrei no curso de cinema e precisei escrever uma pequena crítica para uma disciplina, dentre todas as obras possíveis que já havia visto, escolhi falar sobre Kauwboy. Você pode ler esse meu texto antigo clicando aqui. Não é um dos meus escritos favoritos, mas consigo sentir e até mesmo recordar a minha própria animação ao escrever cada uma das linhas. Kauwboy, por mais que tenha sido selecionada pela Holanda como representante a categoria de Melhor Filme Estrangeiro para o Oscar de 2013 (não conquistando uma vaga na seleção final, infelizmente), parece-me que é ignorado até mesmo nos círculos cinéfilos mais fervorosos.
Anos mais tarde, já na universidade, eu pude descobri o emocionante retrato sobre luta de classes feita em Kes (1969), o filme que alguns consideram como sendo a obra-prima do Ken Loach e responsável por fixar todas as faixas da trilha sonora composta pelo John Cameron na minha cabeça impedindo com que eu a esquecesse até os dias de hoje.

É fácil cair no reducionismo ao aproximar as duas obras. Ambas possuem protagonistas passando por um período delicado de seu amadurecimento, não sendo apoiados pelas figuras de autoridade mais velhas e sofrendo abusos. Os dois filmes também possuem filhotes de aves como catalisadores de mudanças na vida desses personagens. Contudo, o cerne de cada um deles, o assunto-chave que pretendem tratar, distancia-os totalmente. Muito se deve, é claro, a cada um dos seus realizadores, Koole e Loach, assim como a forma única com que enxergam tanto a própria narrativa quanto os personagens que nela habitam. Nesse sentido, penso que Pequenos Animais sem Dono da Maju de Paiva seja mais próximo em sua espinha-dorsal de Kauwboy por mais que siga uma nova via, uma terceira!, mais semelhante a sua realizadora. Essa aproximação captada de forma subconscientemente por mim explicaria muito da fascinação (mas não toda) que senti desde a primeira vez em que assisti ao filme em meio a uma longuíssima sessão dentro de um lotado Odeon.
Kes trata sobre opressões de classe, principalmente em instituições. Kauwboy trata sobre opressões no próprio lar. Pequenos Animais sem Dono também trata sobre uma opressão no lar, mas se interessa mais na violência que surge com ela.

Em um momento durante o filme, a personagem Olivia (Rebeca Bourseau) se indigna com a postura conformista de Arthur (Vinícius Alexandre), seu melhor amigo, e inquire a ele: por que você aceita tudo que os adultos falam? Essa dinâmica entre as duas crianças, semelhante a um cabo de guerra, irá permear toda a narrativa. Arthur: um menino que mesmo sendo violentado pelo próprio pai (ou até mesmo por conta disso) possui uma personalidade submissa e tolerante. Olivia: uma garota que parece guardar dentro de si uma incontrolável violência, além de um desejo por mudar o status quo que a rodeia (principalmente os hematomas que surgem cotidianamente em seu amigo). Durante a história, parece para nós, os espectadores, que a menina está cutucando cada vez mais forte Arthur em busca de uma reação.
Eis que, assim como os dois longas-metragens citados anteriormente, um animal surge como catalisador de mudanças: um gato. O felino abandonado é adotado a contragosto pelo garoto: mais por imposição da Olivia do que por vontade própria . Durante a noite, até o próprio bichano parece o observar em busca de alguma atitude espontânea e ativa. Os dois amigos oferecem o amor que pensam ser o apropriado ao animal encontrado, cada um a sua maneira: Arthur o escondendo em casa e o carregando oculto em sua mochila quase como um simbolismo de seus sentimentos em relação a própria vida — os quais esconde até de sua amiga; e Olivia tentando tirar o bichano de sua zona de conforto (ração) e testando os limites da violência animalesca ao tentar comprar peixes vivos para alimentá-lo.

Bem. Caso você tenha lido esse textinho até aqui, subentendo que estou dialogando com que já assistiu ao filme e por conta disso possuo permissão para discorrer sobre as revelações finais. Caso ainda não o tenha visto, no final dessa página vou deixar o curta-metragem na íntegra para que você não seja surpreendido por nenhum spoiler indesejado. Veja o filme e volte pra cá. A partir daqui, eu falarei sobre o término da história.
A conclusão de Arthur pode ser lida de duas formas diferentes; nenhuma delas excludente da outra. Ao escolher conscientemente machucar de alguma forma o pai colocando cacos de vidro em sua roupa, o espectador pode compreender que o menino foi “quebrado” pelas diferentes formas de violência que o rodeava — seja da própria amiga ou do seu pai, guardada a devida proporção, é claro! Seu regime de submissão chegou ao fim através de uma impetuosa cólera tal qual fora a trajetória dos meninos perdidos na ilha deserta no romance de William Golding, O Senhor das Moscas (1954). A morte do gato havia ultrapassado o seu limite e ele sentiu a necessidade de realizar a retaliação contra o seu contínuo agressor. Contudo, também podemos entender essa ação como uma forma de amadurecimento compulsório ocasionado pela violência. O revide como escape, liberdade — como deixa claro o último plano da obra. Ele havia se equiparado ao nível de crueldade do próprio pai para poder assim o sobrepujar e conseguir se livrar tanto do controle de seu patriarca, quanto da forma submissa como levava sua vida.

Pequenos animais sem dono carrega em si uma potência rara de se encontrar em um curta-metragem, principalmente sendo ele uma narrativa iniciática. Maju, que além de assinar a direção também é a roteirista, consegue trabalhar o território melancólico e mutável da psique infantil de forma incrivelmente fluida. O desenvolvimento psicologizante dos dois personagens ocorre de maneira sutil e espontânea: realização digna dos melhores exemplares do coming of age. Recentemente, eu estou com uma poesia do Billy Collins na cabeça: On Turning Ten. Vou finalizar o meu texto com um trechinho dela, porque, além dos protagonistas em tela possuírem essa faixa-etária, eu acho que dialoga de uma forma surpreendente com a obra.
Parece que foi ontem, quando eu costumava acreditar que sob a minha pele somente havia luz. E se me cortassem, eu brilharia. Mas hoje, ao cair pelos trilhos da vida, machuco os joelhos. E sangro.
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