Nelson, 40 graus: o coming of age nas obras de Nelson Pereira dos Santos
- Pedro Alves
- 19 de jun. de 2019
- 10 min de leitura
Atualizado: 16 de mar.

Conhecido por suas obras de cunho social e de denúncia, o cinema de Nelson Pereira dos Santos possui muitas particularidades. Uma delas, a qual abordarei nesse trabalho, é a forma como o cineasta retrata seus personagens infantis e como é representado o período da infância em seus filmes. Uma relação é tecida entre os longas-metragens do diretor e o subgênero cinematográfico coming of age — originado da veia literária do romance de formação (Bildungsroman, no original) surgido no século 19. Perguntado sobre quais seriam os elementos necessários em uma narrativa coming of age, o roteirista Michael Hauge responde que
quase sem exceção, as histórias coming of age são sobre a transição da adolescência para a idade adulta, de parar de ser definido pela família ou pela sociedade e passar a se definir. O herói está entre os 10 anos de idade (Elliott em E.T.) ou em uma adolescência tardia (os quatro heróis de American Graffiti).
A partir da definição de Hauge, identifica-se uma grande problemática na tentativa de categorização de coming of age como subgênero cinematográfico. Em pesquisas acadêmicas e no uso geral, a expressão é utilizado como um termo guarda-chuva que abarca obras de variados gêneros. No artigo The “coming of age” of coming-of-age films são enquadrados nessa mesma categoria filmes como Os sonhadores (2003), Superbad : É Hoje (2007), Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010) e Jogos Vorazes (2012). Para fins didáticos, considera-se nesse artigo a definição de Hauge para o subgênero.
Ao analisarmos o longa-metragem Rio, 40 graus (1955), podemos depreender algumas características que possibilitam a aproximação com o subgênero literário inglês. Por mais que, à primeira vista, a narrativa seja episódica sobre incidentes que ocorrem tendo o Rio de Janeiro como pano de fundo; caso pudéssemos escolher os protagonistas, ou seja, aqueles que participam das peripécias ou direcionam o olhar do expectador, iríamos apontar para os cinco vendedores de amendoim.

Acompanhamos, durante o período de 24 horas, o cotidiano dos protagonistas. Durante a narrativa, nós podemos entender como eles, ao mesmo tempo, são afetados e afetam a cidade. Eles se defrontam com situações que, além de funcionarem como um panorama social crítico da época, desenvolvem a psique desses indivíduos que diariamente são obrigados a descerem de suas casas no morro e irem trabalhar na pista — nos cartões-postais do município.
É interessante observar que, por mais que existam muitas tramas paralelas que exponham para o expectador de maneira nua e crua a realidade de seu tempo, a direção de Nelson Pereira para com seus pequenos protagonistas é, na grande maioria das vezes, lúdica. Tentando nos aproximar daquele universo tão imaginativo e particular. Uma dessas sequências que merece destaque é da passagem de um dos personagens pelo zoológico da Quinta da Boa Vista.
A sequência se inicia em decorrência de uma motivação bem particular. A lagartixa de estimação, que o personagem guardava em seu bolso, escapa para dentro do zoológico e ele vai a seu resgate. Ao conseguir recuperar o animal, ele continua sua perambulação; onde a sensível direção de Nelson consegue transmutar o encantamento do menino frente ao zoológico e a variedade de animais que vê. O final da sequência, contudo, escancara o choque de realidades — apenas um dos vários encenados pelo filme.
O choque de realidade é o que estrutura filmes considerados coming of age. Na maioria das vezes, esse choque advém da idade e de como o mundo dos jovens parece tão distante e intransponível para os adultos. No caso da sequência do zoológico, esse choque se mostra com a abordagem violenta do guarda interceptando o menino e enxotando o mais rápido possível — além de alimentar a cobra do zoológico com a lagartixa de estimação do personagem.

A forma particular de como o grupo de crianças funciona como um microcosmo representativo do cotidiano que o cerca também deve ser ressaltado. Os meninos possuem uma meta para fazer juntos: comprar uma boa bola. Isso que os faz unir forças e dar uma unicidade daqueles protagonistas como um grupo que almeja um mesmo objetivo. Durante os esforços para concretização dessa vontade, podemos perceber que eles possuem seu próprio sistema financeiro. Eles trocam favores e adquirem dívidas através da troca de figurinhas e apostas. Por mais que também sejam obrigados a dar o valor necessário ao dinheiro do mundo dos adultos.
O descontentamento dos protagonistas é visível. Por mais que os personagens se considerem adultos e realizem tarefas que em teoria não deveriam ser designadas a eles, o outro universo, a cidade, o impede de se sentir incluído nele a cada instante. Primeiramente pelo preconceito por conta da classe social e da raça dos meninos que, em algumas situações, evolui para o conflito básico de filmes coming of age por conta da idade.

Se analisarmos, por exemplo, a sequência de um dos personagens no Pão de Açúcar se pode perceber a exclusão do menino do “universo dos homens” quando o mesmo tenta fugir de um senhor que tenta obrigá-lo a dar metade de seu dinheiro. O garoto se refugia no grupo de um turista italiano que o protege momentaneamente. Um momento que recorda para o espectador que os meninos, por mais que tenham um olhar mais amadurecido por conta de suas vivências, ainda são apenas meninos.
Verdade que ainda é reafirmada quando um dos vendedores de amendoim precisa de dinheiro para voltar pra casa e esbarra com um personagem que possui o estereótipo típico da malandragem carioca da época. Contudo, esse personagem é bem mais novo que ele, fuma, possui fala afetada e, em poucos instantes, demonstra a forma certa de pedir dinheiro aos pedestres. A ausência de malandragem no garoto acrescenta certa inocência ao personagem.
Em seu artigo sobre o filme, Juliana Sangion destaca também
[…] o esforço do diretor em dar uma visão menos folclórica ou idealizada aos habitantes e à própria cidade do Rio de Janeiro. Tentativa essa reconhecida por outros cineastas, como Glauber Rocha, que em sua Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), comenta o empenho de Nelson Pereira dos Santos na busca de um cinema realista brasileiro, de um “neo-realismo carioca”.
O neo-realismo italiano a qual Glauber Rocha compara o filme foi responsável por uma obra similar: o longa-metragem Alemanha, Ano Zero (1948) de Roberto Rossellini que também é protagonizado por um olhar infantil e expõe as mazelas de sua época.
Será que as obras dessa escola não podem ser analisadas sobre a ótica do coming of age sem que percam seu caráter social intrínseco?

Afinal de contas, existe muito mais significados na sequência do atropelamento, por exemplo, do que uma simples fatalidade do cotidiano como seria apresentado ao coming of age cotidiano. A montagem paralela da sequência de perseguição de um dos meninos, somado a sequência das pessoas assistindo a um jogo de futebol, que culmina em seu atropelamento e na comemoração da torcida, é um objeto que daria um denso ensaio sobre análise de montagem e discurso. O momento da mãe desse personagem, solitária, aguardando na janela pelo filho que nunca irá retornar, também demonstra que a morte do personagem não foi algo gratuito. Esse momento encerra o filme como um dos últimos planos. Marcando narrativamente as perdas que aconteceram no caminho.
Ao analisar O Amuleto de Ogum (1974), pode-se perceber que a abertura que engloba a infância do protagonista é destoante de todo resto da narrativa. A começar pela fotografia que possui tons mais próximos ao sépia do que do colorido presente no restante da obra, e pelo espaço onde ela se desenrola.

Acompanhamos, em um curtíssimo espaço de tempo, o protagonista perder seu pai que é assassinado e ter seu corpo fechado por sua mãe, preocupada com seu bem-estar, em uma cerimônia. Uma sequência que esteticamente chama a atenção do expectador e, quando olhada em retrospecto ao fim da película, fica marcada na memória de quem a assiste. O coming of age rotineiramente resume, normalmente em um evento marcante da infância ou da adolescência, os caminhos de caráter e comportamento que personagens tomarão para o resto de suas vidas. Propósito que é feito com sucesso por esse encadeamento inicial.

Em 1963, Nelson lançaria Vidas Secas.
Se nas duas outras obras citadas o conceito de como conhecemos infância está presente de forma bastante nebulosa, nessa adaptação literária ele é quase inexistente. Os dois personagens infantis não possuem muito tempo de projeção, mas suas aparições são bastante pontuadas e relevantes para a progressão da história.
Logo em seu início, Nelson Pereira dos Santos apresenta toda a dinâmica familiar sem que seja preciso um diálogo sequer. Todas as vezes que as crianças surgem em quadro durante a caminhada da família pelo sertão são para ratificar as duas únicas funções exercidas por elas na narrativa: serem fardos que os pais carregam ou ajudando os pais a carregarem pesos. Essa dicotomia nos é apresentado pelos dois irmãos. Um deles, o mais velho, está ajudando a carregar as posses da família e o outro está sendo levado pela mãe a tiracolo. Após um tempo, o menino perece pelo cansaço e, assim, também começa a ser carregado pelo pai.

As relações que as crianças estabelecem com os outros personagens durante a narrativa também são essenciais para compreender quem são esses indivíduos em sua subjetividade. Os dois personagens que mais verbalizam durante a história são a mãe e a cachorra Baleia. O que polariza a atenção dos irmãos de maneiras diferentes. A cachorra sempre é solícita ao chamado — ao menos, no início da película — e participa de todas as tarefas dadas aos meninos de forma enérgica; representando essa força típica da infância e o lado lúdico dos irmãos. A mãe representaria a lei dentro do lar e, como o marido deixa claro em parte da trama, o conhecimento.
A relação dos filhos com o pai se mostra indiferente. A figura dele funciona como aquela que os filhos procuram quando não conseguem a ajuda materna. O pai se porta de maneira opressora para com os animais que cuida e isso acaba afugentando os próprios filhos que o observam durante seus repetidos e diversos maltrates. O que adquire um contraponto narrativo para o expectador ao percebermos que o homem se porta ingenuamente e de maneira passiva frente a injustiças cometidas contra ele.
Sobre os personagens, Marcos Aurélio Ruy desenvolve em seu texto que eles
portam-se quase como bichos, a sua humanidade desaparece em grande parte porque se igualam a bichos, mas apresentam humanidade, ainda que rudimentar, quando mostram seus sonhos, até mesmo a Baleia parece sonhar, só que os sonhos de Fabiano e de sinhá Vitória vão num crescer entre uma cama de couro e um futuro melhor para os filhos, quando sinhá Vitória afirma que eles vão para a escola e ter a chance de ter outra vida que não a de seus pais.
Duas sequências são fundamentais para pensarmos a infância nessa narrativa.
A primeira é quando a curandeira visita a casa da família para ajudar na cura do pai espancado por um policial local. A única pessoa que a observa fixamente é o filho mais velho. Todo aquele misticismo que não lhe é comum parece fasciná-lo. A curandeira, por mais excêntrica que pareça à primeira vista, é o ser mais próximo e compatível com a mente lúdica do menino.

Logo em seguida, frente a uma insistente dúvida, o menino procura a detentora de todo o conhecimento: sua mãe. Ao encontrá-la, porém, ela se apresenta muito ocupada e responde evasivamente a questão do filho. O que seria o inferno?, é a indagação que o aflige. Ele, então, vai à procura do pai que o responde de maneira ainda mais insatisfatória. Voltando a perguntar mais uma vez para sua mãe, ele é enxotado da casa.
Não gratuitamente, as definições que a mãe dá para o filho sobre como o inferno seria (“um lugar horrível”, “pra onde vão os condenados”, “cheio de fogueira e espeto quente”) se encaixam precisamente com o lugar onde eles haviam escolhido morar. O filho fica ruminando sobre isso do lado de fora e, como sua única companhia, se encontra a cachorra. Reafirmando que o animal é a representação de toda a inocência daquelas duas crianças.
A segunda sequência consiste na morte da cachorra pelo pai.
Durante o decorrer da trama, podemos ver que o animal começa a ficar mais relapsa com seus donos. Quando os mesmos visitam a cidade, Baleia desaparece e não é mais encontrada. Somente na volta da família pra casa que o animal ressurge.
Logo antes da nova mudança da família, a cachorra fica doente e tem que ser sacrificada pelo pai. Não deixa de ser interessante de observar pela leitura de que Baleia representaria a inocência dos meninos em uma esfera metafórica que o pai seja o responsável pela sua morte. As duas crianças acompanham trancadas em casa com sua mãe a morte de sua própria inocência.
Ao analisarmos as três películas em retrospecto, podemos perceber o jeito diferenciado que a direção de Nelson Pereira dos Santos retrata a fase infantil de seus pequenos personagens.
A infância se mostra como uma etapa importante no ciclo da vida de qualquer indivíduo: seja na brincadeira enquanto vendem amendoim pela cidade do Rio de Janeiro; participando de uma cerimônia de caráter fantástico ao lidar com o luto da perda paterna; ou quando ela se prova quase inexistente no cotidiano do sertão nordestino.
Se classificássemos os filmes dissecados nesse artigo como coming of age, iríamos ignorar a pluralidade de questões abordadas pelas narrativas, isso é verdade. Contudo, há de se observar que todas as obras citadas possuem elementos que são caros para o subgênero. Assim como os seus protagonistas que acabam confirmando a importância das ações que ocorreram durante o período de amadurecimento, a morte se prova como uma questão-chave nesse amadurecer. Seja de um de seus amigos como em Rio, 40 graus; de seu pai como em O Amuleto de Ogum; ou de seu animal de estimação como em Vidas Secas.
O luto se confirma como o cerne das narrativas coming of age dos filmes de Nelson Pereira dos Santos. Algo que obriga abruptamente seus personagens infantis a amadurecerem e que os define para o resto de suas vidas. A morte é usada como um rito de passagem para a fase adulta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Rafael de Luna. Descascando o abacaxi carnavalesco da chanchada: A invenção de um gênero cinematográfico nacional. Contracampo (UFF), v. 23, p. 66–85, 2011.
HAUGE, Michael (2015). Q&A: Coming of Age Stories. Disponível em: <http://www.storymastery.com/qa/qa-coming-age-stories/>.
RUY, Marcos Aurélio. Os 50 anos de Vidas Secas, o filme. Disponível em: < http://www.vermelho.org.br/noticia/210813-11#.WP9hjH_U1TM>.
SANGION, Juliana. Realismo e realidade no cinema brasileiro: de Rio, 40 Graus a Cidade de Deus. Caligrama (São Paulo. Online), [S.l.], v. 1, n. 3, dec. 2005. ISSN 1808–0820. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/caligrama/article/view/56694/59723>.
ZHANG, Rebecca; OZAKI, Ryohei; PARIHAR, Parth (2014). The “coming of age” of coming-of-age films. Disponível em: <https://princetonbuffer.princeton.edu/2014/06/12/the-coming-of-age-of-coming-of-age-films/>.
FILMOGRAFIA CITADA
Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955, 100 minutos).
Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963, 115 minutos).
O Amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974, 112 minutos).
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