Buuu: um chamado para a aventura (1ª temporada, 2015)
- Pedro Alves
- 13 de ago. de 2018
- 11 min de leitura

Ou como um faraó, Carlos Chagas e uma menina zumbi compõem uma série infantil.
Esse texto foi resultado de um trabalho produzido a muitas mãos. As co-autoras e co-autores são: Izabel Felício (@ifelicio); Júlia Freiman (@racconteur); Helena Araujo (@blitzkriegbop_) e Vinícius da Fonseca (@ofvns). Procurem eles pelos respectivos arrobas para dar aquela força!
Em 2012, a Globosat resolveu desenvolver ainda mais seu mercado consolidado nas TVs por assinatura e lançou o canal infantil ‘Gloob’. A faixa-etária de seu público alvo consistia em um segmento intermediário entre crianças pré-escolares e as infanto-juvenil — entre cinco e oito anos de idade, mais ou menos. Durante essa mesma época, a Globo, canal de TV aberta da mesma programadora, passou por uma revisão do seu conteúdo exibido em sua grade matinal: substituiu a sua programação voltada ao público infantil por programas direcionados ao público feminino, onde abordava questões relacionadas á saúde, bem-estar e variedades. A justificativa para tal movimento migratório foi a crescente movimentação dos anunciantes para canais fechados como Cartoon Network e o Discovery Kids que atingiam crianças pertencentes à família com alto potencial de consumo, além de possuírem uma enorme audiência que só era ultrapassada pelos canais esportivos.

A partir do anúncio do canal, vários projetos direcionados ao público infantil começaram a ser desenvolvidos: ‘D. P. A. : Detetives do Prédio Azul’ (2012); ‘Click’ (2012); ‘Tem Criança na Cozinha’ (2013) e a animação ‘Osmar, a Primeira Fatia do Pão de Forma’ (2013). Em 2015, o canal estava prestes a lançar a sua mais nova série: ‘Buuu : Um chamado para a aventura’. Contudo, desde o começo do projeto, foram postos em prática os acertos ocorridos em seus programas anteriores. O Gloob se sustentou no caráter de aventura e mistério de seu novo seriado e realizou sua divulgação majoritariamente através de uma campanha digital. Através de um jogo de realidade alternativa (ARG) chamado ‘Enigmas’, o canal lançava a cada semana uma espécie de senha em sua grade de programação e através de suas redes sociais. Com essa senha, as crianças conseguiam ir ao site oficial do seriado e liberar conteúdos inéditos sobre a trama e seus personagens — visto que em sua grade de programação normal, só era exibido um teaser misterioso que não explorava nem a história, nem os seus personagens.
Uma dos enigmas semanais exibidos na grade de programação do canal.
Composta por vinte e seis episódios em sua primeira e, até o momento, única temporada; Buuu acompanha seus quatro protagonistas que, ao visitarem o Instituto Butantan durante suas férias escolares, são surpreendidos por um grupo de fantasmas que pede a sua ajuda.

Existem alguns pontos sobre a narrativa que são bastante interessantes de serem ressaltados. O primeiro e mais perceptível deles é a tentativa por um ponto de vista mais diferenciado das produções infantis costumeiras, onde o protagonismo é sempre oferecido para os meninos. Analisados rapidamente, podemos perceber a existência de uma meticulosa divisão entre os quatro protagonistas ao observar que metade de seus personagens são meninos e a outra, meninas.
Importante observar o cuidado ao criar os protagonistas do programa com características psicológicas muito humanizadas, gerando assim uma aproximação com seu público-alvo. Os quatro personagens possuem virtudes e frustrações comuns de crianças contemporâneas. A forma como a narrativa da série lida com isso implica numa identificação entre o espectador e os personagens. Além disso, a criança sempre é representada frequentemente na série com papel ativo, capaz de iniciativas criativas e resolução de problemas. A forma lúdico-dramática de aprendizagem presente em ‘Buuu’ percorre tanto noções afetivas como reconhecimento prazeroso, o conhecimento anedótico, a identificação emocional e o humor, quanto formas de conhecimento analítico-racional. Isso contribui ativamente com o desenvolvimento de aspectos emocionais da criança como a autoconfiança e a autoestima para superar as adversidades enfrentando medos e desafios. Nesse sentido, formação e “entretenimento” se sobrepõem ao invés de dissociar-se, como foi estabelecido pelo racionalismo acadêmico.

Além disso, um dos pontos mais elogiados da série foi a humanização recorrente de criaturas monstruosas, algo que auxilia seu público-alvo a ir perdendo o medo de figuras pertencentes ao imaginário infantil e seus terrores — simultaneamente em que as cativa visualmente pelo fascínio delas por personagens que rejeitem a anatomia banal. Ao colocar um gigantesco gorila azul, um grupo de fantasmas e uma menina zumbi para auxiliarem as crianças em suas desventuras, Buuu vai demonstrando para seus espectadores mirins que não existem razões para os temerem.
O incentivo para a promoção do conhecimento científico brasileiro também é perceptível durante todos os episódios. A começar pelo grupo de fantasmas que, antes de morrerem, eram renomados cientistas na vida real tendo, entre eles, o imunologista Vital Brazil e o bacteriologista Carlos Chagas, ambos brasileiros. Eles também conseguem transformar um local real como o ‘Instituto Butantan’, com seu parque aberto e museus, em um lugar fantástico e mítico para as crianças — assim como os ambientes mágicos criados por muito dos programas de outras nacionalidades vistos por elas.

Somasse a isso, a cultura egípcia transmitida ludicamente através do seu antagonista, o Faraó Sobekhotep I. Como observado através das décadas, conhecimentos podem ser apresentados em programas infantis e conseguir que o público-alvo esteja aberto a absorvê-lo — seja em programas propriamente educativos, ou não. Podemos citar como exemplo a geração de crianças que foi apresentada a mitos gregos através da animação ‘Hércules’ (1997).
O conteúdo da série trata de assuntos pertinentes para o desenvolvimento de aspectos cognitivos e sociais da criança como raciocínio lógico (diversos episódios, incluindo o dos pajés), percepção rítmica e espaço temporal, além da apresentação de noções científicas e históricas de maneira leve e divertida. É interessante ressaltar que as cenas destinadas a cumprir objetivos pedagógicos são muito bem combinadas com músicas, cortes dinâmicos com ação e humor, sustentando o lúdico e, portanto, atraindo a atenção da criança e divertindo-a. Assim, o programa cumpre muito bem o objetivo de colaborar com o desenvolvimento de diversas competências das crianças que o assistem.
‘Buuu’ vem reafirmando os escritos de Bettelheim que tratam sobre a narração lúdica e em como ela permitiria à criança entender suas emoções, fortaleceria seu eu sugerindo reações positivas ao seu medo de situações adversas e violentas, que lhe permitiriam superar suas angústias, sentimentos de desamparo e fraqueza, falta de amor e insegurança. O seriado sempre coloca seus personagens mirins como responsáveis de suas decisões e fortes o suficiente para lidar com as consequências acarretadas por elas.
Sobre o quarteto protagonista, possuímos ainda alguns comentários direcionais:

Carlinhos
Carlinhos tem 12 anos. Ele é irmão de Casca e melhor amigo da Isadora. Diferente de seu irmão, Carlinhos é recluso e prefere seu celular a interagir com as pessoas. O menino também tem um humor muitas vezes negativo, podendo ser considerado um estereótipo de pré-adolescente. Ele e seu irmão têm uma relação de parceria e implicância, bem recorrente em relações do tipo somadas a uma grande diferença de idade. Eles são levados por seus pais ao Instituto Butantan para um passeio. Inicialmente, Carlinhos não curte a ideia, mas muda de opinião quando encontra a sua amiga, Isadora. A relação entre eles beira o romance. Os dois são muitos amigos e se admiram.
Ao chegarem ao Instituto, as crianças querem explorar o local e Carlinhos, com seu humor sempre negativo, prefere ficar mexendo no celular. Contudo, ele acaba convencido a ir, já que precisa cuidar de seu irmão. Há uma mudança no humor do Carlinhos durante os episódios: no começo, ele não quer estar ali, vai contra as decisões do grupo e quase sempre é negativo, mas, aos poucos, vai se interessando pela aventura e se tornando um importante personagem na resolução dos enigmas.

Carlinhos se revela muito inteligente e destemido. Junto a seu irmão e amigas, ele desvenda charadas, confronta medos e torna-se uma pessoa muito mais alegre. É interessantíssimo ver o amadurecimento e mudança do personagem que, em muitos momentos, chega a tomar a liderança do grupo almejando ajudar os fantasmas — já que no começo, ele é contra o retorno ao Instituto Butantan para entender o que estava realmente acontecendo no lugar.
Cada criança é construída de maneira a serem únicas e essenciais para que o grupo funcione, pois, as habilidades de cada uma são importantes para o desenvolvimento da narrativa. A relação estabelecida entre eles, além de ser necessária para criar uma história mais interessante, auxilia na identificação do telespectador com os personagens. Carlinhos e Isadora possuem uma relação de amizade bem forte que, em alguns momentos, parece um romance, evidenciando que é possível que relacionamentos como esse aconteçam entre crianças. Além disso, há a relação entre irmãos que começa com muita implicância e vai se tornando cada vez mais estreita. São múltiplas as possibilidades de interação que acontecem na série, que auxiliam de maneira positiva o público, pois através do reconhecimento em tela, há a abertura de um caminho cheio de possibilidades de aprendizagem de quem se é e com quem se vive.

Casca
Dentre os quatro personagens Casca é o mais novo e é o irmão de Carlinhos. A relação entre os dois irmãos é bem interessante, pois, constantemente Casca ressalta a coragem do irmão e toda a admiração que sente por ele. Carlinhos, por sua vez, também elogia o irmão (exceto em momentos de humor em que tira sarro dele para as meninas, a típica relação de irmão mais velho com o irmão mais novo). Já sobre as meninas, Casca sempre foi aberto para receber as ideias delas, aceitando iniciar a aventura no primeiro episódio sem rodeios, por exemplo — diferentemente de seu irmão que hesitou.
Casca é o personagem mais ligado ao humor da série, é dele o bordão “assombrou” usado durante toda a primeira temporada. Além disso, ele é responsável por elaborar inúmeras piadas sobre a aventura que eles estão vivendo. Casca é uma “figura”. Além disso, o menino é um personagem “estiloso” que anda sempre vestido com seu casaco amarelo e com a sua mochila infinita cheia de bugigangas que ajudam nas aventuras pela pirâmide.

Sua relação com os personagens adultos do Butantã é bem parecida com a das outras crianças: assume um posicionamento de antagonistas por serem sérios e rígidos. Entre seus pais, Casca é amoroso e carinhoso, assim como é com Carlinhos nos momentos de introspecção entre os dois — a cena em que o irmão mais velho pensa em desistir da aventura no episódio 11 e Casca elabora um discurso para encorajá-lo novamente é um deles. Com os fantasmas e monstros também tem uma relação carinhosa. É ele quem, na maioria das vezes, faz a aproximação entre os monstros e os outros personagens. Com Sime, o gorila azul, Casca desenvolve uma curiosa relação de intérprete: apenas ele entende o que o gorila quer dizer com seus gestos grosseiros, além de o gigante azul apenas falar os nomes “Sime” e “Casca”. Por fim, Casca é um personagem essencial para a trama, transmitindo mensagens importantes para as crianças que o assistem e podem se identificar com ele.

Isadora
Isadora é uma das quatro protagonistas da série, amiga de Carlinhos e vizinha de Chica. É uma menina doce e meiga, está sempre demonstrando sensibilidade e carinho com os outros personagens. É interessante observar que a vulnerabilidade de Isadora contrasta com seu espírito de coragem e perspicácia para lidar com os problemas enfrentados por eles durante o decorrer da narrativa.
A relação de Isadora com os outros três amigos é construída como uma parceria, Isa está sempre bem-humorada e agregando ao grupo — aberta às sugestões de Chica e divertindo-se com as brincadeiras de Casca. Com Carlinhos, nutre-se um quase romance, uma relação infantil com desajeitados pequenos momentos de interações que não ofuscam a ação e o enredo principal do programa. Apropriado, portanto, a proposta e a classificação indicativa.
A personalidade de Isa é carinhosa, mas também muito corajosa e energética, por vezes tomando a frente das decisões do grupo e sempre agregando e propondo novas soluções. Essa construção de personagem é fundamental para o desenvolvimento de uma narrativa em que as personagens femininas participam ativamente das atividades físicas, dos processos lógicos e mentais e não tem arcos fundamentados apenas em romances ou sendo as “damas indefesas”. Isa e Chica têm personalidades muito diferentes, mas ambas são muito fortes e contribuem bem com uma nova representação feminina nos programas infantis.

Chica
A personagem Chica é interpretada por Any Gabrielly — atriz mirim que, dois anos após a série Buuu : Um Chamado para Aventura, dublou a protagonista Moana no filme Moana: Um Mar de Aventuras (2016). Em entrevista, a própria Any descreve Chica como “chica — a inteligente” e diz que a personagem é a nerd do grupo. Na mesma entrevista, Any também fala como foi desafiador para ela interpretar tal papel, por conta da diferença de personalidade entre a atriz e a personagem. De acordo com Any, Chica é quietinha, um tanto tímida e ela, na vida real, é mais expansiva.
É possível deduzir um pouco da personalidade de Chica a partir de seu figurino: um óculos, estereótipo dos personagens inteligentes; meias 3/4 (até o joelho), que remetem ao look nerd; um cordão com pingente de robô, mostrando que a personagem gosta de tecnologia; as unhas pintadas de azul podendo ser uma pista de que Chica é a mais velha do grupo ou simplesmente antenada na moda[1], fica a interpretação de cada um; e por fim, porém não menos importante, seu tablet — sempre em mãos, o fiel escudeiro de Chica é quase um personagem.

É interessante como a série Buuu : Um Chamado para Aventura incorpora o uso de aparelhos eletrônicos, tão presente nos dias de hoje, principalmente entre as crianças. A todo o momento, Chica utiliza seu tablet para pesquisar alguma informação necessária para o desenvolvimento da trama e descobrir curiosidades sobre o Instituto Butantan. No episódio cinco, da primeira — e única — temporada, as crianças encontram três índios da Amazônia que cantam um mantra cuja letra contém as pistas para achar os elementos do Soro da Imunidade. Com seu tablet, Chica filma o mantrae as crianças recorrem ao vídeo ao longo de toda a série, a fim de recordar a letra e desvendar as pistas. Fica evidente que o tablet é imprescindível para o desenrolar da história, não só em termos de roteiro, mas também na direção. Algumas filmagens e fotos feitas com o tablet fazem parte da decupagem, tornando-se frequentes os planos ponto de vista da câmera do tablet, dando a ideia de que Chica está filmando a cena e as montagens em time-lapse de fotos — principalmente selfies — tiradas com o aparelho.

No episódio 17, aparecem os pais das crianças, preocupados com os filhos que supostamente se perderam na floresta do Butantan. Chica é a única personagem cujo pai não aparece, abrindo um leque para várias interpretações a respeito, por exemplo, uma possível identificação com a personagem do público infantil cujos pais são divorciados. No episódio seguinte, Chica menciona que sua mãe tem mais de um telefone, dando a entender que ela é possivelmente uma mulher de negócios. A meu ver, isso representa uma mãe independente, uma figura feminina autossuficiente, que diz muito sobre a personagem — nesse caso a filha seria o reflexo da mãe, uma menina inteligente que futuramente também será uma mulher de negócios e independente.
Por fim, a personagem de Chica é importantíssima para a trama, não só por desvendar vários dos mistérios, mas também por permitir que o público infantil se identifique. Meninas e meninos que gostam de ciência, tecnologia e são considerados nerds — de uma maneira muitas vezes pejorativa, infelizmente — ganham espaço e destaque na série através da personagem. Além disso, Chica traz a representatividade negra para a série — embora, em minha opinião, poderiam ter mais personagens negras, é importante que uma das protagonistas o seja. Chica também mostra para as crianças que não há nenhum pecado em andar por aí grudada em um aparelho eletrônico — ato que muitos pais, pedagogos, psicólogos e professores insistem em condenar -, basta saber usá-lo de maneira saudável.
[1] Afinal, a personagem é antenada em tudo, por que com a moda seria diferente? Em todos os seus figurinos, Chica usa acessórios “descolados”, mostrando para o público infantil e para as crianças que se identificam com a personagem, que é possível ser inteligente e fashion ao mesmo tempo. Quebrando, dessa forma, o estereótipo do nerd cafona.
Ao fim da transmissão de todos os episódios de sua temporada de estreia, Buuu atingiu um enorme sucesso de audiência e uma segunda temporada foi oficialmente anunciada em 2015. Ela nunca chegou a ser produzida. Os direitos de transmissão da série em território português foram adquiridos pelo canal SIC K sob o nome de Buuu, onde é exibida esporadicamente até os dias atuais.
BIBLIOGRAFIA
CANESSO, Natacha Stefanini. OS FANTASMAS E A MANIFESTAÇÃO DE UMA MARCA: Um chamado do seriado Buuu para a aventura do Mundo Gloob. 2015. 14 p. Artigo Acadêmico (Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas)- Universidade Federal do Oeste da Bahia, Bahia, 2015. Disponível em: <https://www3.ufrb.edu.br/comunicacaoeprocessoshistoricos/images/Canesso_NS_GT_Comunicacao_cultura_tecnologia.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2018. BUUU, a nova tração do Gloob. comKids, 15.01.2015. Disponível em: < http://comkids.com.br/buuu-a-nova-atracao-do-gloob/>. Acesso em: 25 jun. 2018. BUUU — Um chamado para a aventura. Hotsite. Disponível em: <http://mundogloob.globo.com/programas/buuu/infograficos/buuu-aventura.htm>. Acesso em: 25 jun. 2018. GLOOB lança campanha para divulgar “Buuu”. PropMark, 11.03.2015. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2015. SANFELICE, Leandro. Em São Paulo, Casablanca grava “Buuu!”, nova série do Gloob. Tela Viva, 05.11.2014. Disponível em: <http://convergecom.com.br/telaviva/paytv/05/11/2014/em-sao-paulo-casablanca-grava-buuunova-serie-do-gloob/>. Acesso em: 30 jun. 2015.
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